sexta-feira, 27 de novembro de 2015



Almost Blue
(Marcia Pfleger)

Um acorde de chuva acompanha "Almost Blue", com Chet Baker...
A noite é úmida como um casaco frio.
Letreiros de neon deixam poças de sangue vermelho e azul no asfalto molhado.
"Oh, almost blue. Almost doing things we used to do "...
Só o amor é tão plebeu, um súdito ajoelhado em adoração.
Não me deixe esquecida atrás da porta, como sua tolice qualquer.
A noite é úmida - como meus olhos borrados num rosto de colombina.
Pela janela, pareço a você uma
triste aquarela em P&B...

(Para ouvir a canção e performance maravilhosa do Chet, siga o link: www.youtube.com/watch?v=z4PKzz81m5c  )



quarta-feira, 25 de novembro de 2015



SOBRE TEXTOS AMANHECIDOS
(Marcia Pfleger)

Alguém disse que texto bom é o texto amanhecido. Eu diria mais: texto bom é aquele que passou a noite na gandaia. Escarafunchou cada recanto escuro de cada viela desaconselhável. Não seguiu mapas, rotas, ruas bem traçadas... seguiu apenas a embriaguez. Conseguiu ver beleza em sarjetas e prostitutas, não negou absolutamente nada, a tudo abraçou como destino ou como velhas companhias. Reduziu-se a uma poça d´água e, de ali, descobre que se vertem nele o céu e as estrelas... Doidaço, faz rabiscos como quem, na surdina, picha o muro com uma declaração de amor - ou de guerra. Dança desengonçado mas ganha a simpatia dos passantes. Pela euforia, pela autêntica paixão de girar numa rotação do seu próprio mundo. Só então alcança o ponto de perder seus pudores, confessar-se com a impiedade que um beato invejaria. Só então, finalmente se entrega, chora, e conta no ouvido da primeira folha em branco que encontra pela frente, toda a história que desde sempre os boêmios profetizaram. E falará de amor, de dor, de política, de seca, de trabalho, de filhos, de Deus, do diabo, de vida, de morte... seja lá do que for. Depois lhe servem café para curar a carraspana. E ao olhar dentro da xícara, descobre a similaridade do redemoinho feito pela colher, com o giro escuro de um disco de vinil no qual toca um velho bolero... Enquanto amanhece o dia, adormece exausto sobre uma página amarrotada, para que outros leiam e despertem...




PRIMEIRO BEIJO
(Marcia Pfleger)

O primeiro beijo aconteceu rente ao portão rendado de ferro, na frente de casa.
Quando a gente era criança e se amava, brincava de pega-pega e depois, muito depois, a gente se pegava de maneira diferente. Com o langor da língua, o gosto de aço do seu aparelho ortodôntico, à maneira dos amores de rapina – enlaçando febrilmente os corpos no que desse pra aproveitar.
Pai e mãe nos flagraram naquele tipo de beijo em que os seres se misturam. Aí você devolve as pernas dele, pega seus braços de volta, a língua ainda meio engatada no aparelho...
Mandaram-me entrar enquanto você partia olhando pra mim. Num relance, vi você fazer uma pirueta alegre na esquina, feito uma pipa colorida ao vento.
Entrei e sentei no sofá da sala, pai e mãe junto.
Ambos me olhavam acusadores.
Eu no meio.
Repentinamente me senti como um nariz entre dois grandes olhos (estrábicos). Esperavam que eu farejasse uma desculpa. Não o fiz.
Mas no sermão que durou até a madrugada, não ouvi sequer uma palavra. Só pensava em como a lua estaria linda lá fora... refletida nos seus olhos em algum lugar...




Hélices
(Marcia Pfleger)

Uma constatação resiste imperiosamente. Hoje está difícil escrever sem me cortar... Liquidificadores, helicópteros, cataventos, descobri que as coisas todas têm hélices. Tudo – tem – hélices – terríveis. Até os automóveis dissimulam uma ventoinha cretina. Por isso evito cozinhas, parques, pessoas, trânsito... Num arranco, posso ser fatiada e reencarnar como persianas de alumínio. E isso seria pavoroso. Ontem mesmo seus olhos me pegaram na botija, em pleno voo de procurar você. Tentei disfarçar, olhar para o outro lado da praça onde um balanço vazio, entre as folhas, consegue ser mais vazio e mais caudaloso no outono... Não consegui. Só pude fechar as pálpebras e sentir a saliva gelada que venta das lâminas se aproximando... flap flap flap flap flap flap zzzzzzzzzzzzzzzzzzzz... Depois, juntar meu coração triturado num verdadeiro festim de sexta-feira 13. Acredite, o maior desejo era me transformar em algo completamente indiferente à sua presença – tão indiferente e estático quanto uma porta. Até descobrir... que minha garganta é precisamente aquela tábua onde a madeira ganhou um nó.





Escavo a escuridão desta noite
(Marcia Pfleger)

Escavo a escuridão desta noite com uma pá e retiro nuvens e trevas e vou abrindo uma trincheira por onde o amanhecer se acumule na tua janela. Por onde o sol reverbere por todos os vidros. Para descobrires que o pássaro que musicava tuas manhãs era eu, era eu...sempre. O meu coração está cansado de aguardar uma palavra mais próxima da tua língua cansado de esperar... Recordo como prendeste o outono num cordão mágico para que não fugisse cheio de labaredas para que não crestasse folhas não gastasse pétalas... Então me ensines, me ensines como apagar teu nome na linha do hemisfério que dividiu meu mundo em Antes e Depois de tua chegada... Me ensines o caminho de volta do único Norte que agora são teus braços. Me ensines a sobreviver a ti quando chorares outra vez quando me estilhaçares outra vez quando minha voz morrer de silêncios quando eu partir e teu olhar amanhecer outra vez sem jamais descobrir que o pássaro que cantava em tua janela e te fazia sorrir era eu... Era eu.





SOBRE PREGUIÇA E OCEANOS
(Marcia Pfleger)

Tenho andado com preguiça... Preguiça de me preocupar. Preguiça de me ajustar no traje pontiagudo de qualquer expectativa. Preguiça de fazer questão. De querer controlar os ventos, seguir portulanos, gráficos... Prefiro deixar o barco ir no remanso. Tenho um céu inteiro no alto e vejo o quanto sou pequena - e o quanto o que está acima é bem maior. Maior do que a minha visão/compreensão desse horizonte que gira num caleidoscópio. Por isso, confio. Confio nesse céu enorme e cambiante acima de mim... Não existe solidão se o meu próprio reflexo me sorri da água. Apenas a certeza de que há ilhas inumeráveis oceano afora e continentes imensos... Um dia, qualquer dia, o barco alcança a terra firme. Sem pressa... Assim como o destino dos rios é o mar, o destino de todos os mares é ter ondas que irão dar na praia. E não existe uma só lei que cancele esse veredicto.






Queda

sempre um tropeço todo início é sempre um tropeço o nosso encontro é um tropeço de um corpo sobre o outro o nosso encontro é a colisão de dois abismos...duas bocas penduradas no mesmo sussurro... te seguro da queda pelo colarinho da camisa escalo os músculos de tuas costas com unhas alpinistas, te trago mais perto, te trago para dentro... e na vertigem de um beijo, puxo tua alma de volta com a minha língua...
(Marcia Pfleger)







SOBRE INSIGHTS E ÓCULOS

O insight é um solavanco na alma. A gente fica abrupta... Tinge sabor de novidade sobre o que é velho, obsoleto, caduco. Chuta o edredon à noite e nos acorda na frialdade – para nos mostrar que estávamos dormindo. Depois, é tomar café sem pressa, esmerilhados no assombro. 
Aí, se faz um pacto de ficar mais ligado, porque o algo revelado de si mesmo era memorável ou era abominável, porém nunca enfadonho. Em todo caso, era igual aos óculos na nossa cara de perpétua procura: o tempo todo ali, e só no de repente a gente se dá conta do nariz... (Marcia Pfleger)




SOBRE AMIGOS IMPERFEITOS
Eu tenho tantos amigos imperfeitos, que nem poderia contar. Cada um - e aí me incluo - tem sua ranzinzice, manias, esquisitices, defeitos... E cada um eu adoro de paixão, sendo como são, exatamente dessa maneira! E rimos, nos divertimos, discutimos, ficamos de bico, gesticulamos, fazemos planos, viajamos (nas férias ou na maionese), nos encontramos e nos abraçamos tocando um o coração do outro. Você pode contar com eles, sempre.
Em compensação, tenho também uma porção de "meio-amigos" perfeitos, que são o suprassumo das virtudes... São absolutamente infalíveis, irretocáveis e irreparáveis em tudo. Festa de confete um no outro e tiro ao alvo (alvo nos de fora) são seus esportes preferidos... Não, você não os vê com frequência. Aliás, só terá notícias deles se estiverem precisando de você para alguma coisa... Mas, você pode contar com eles se for na base do escambo. No mais, eles permanecem ao longe, sempre os mesmos, às tampas fechadas,dentro da mesma panela.
Enquanto isso, na Sala de Justiça... conheço mais e mais amigos imperfeitos dos meus Superamigos imperfeitos e a gente foi tomar aquele chopp na esquina, confessarmos as verrugas e rir de nossas faltas.      
(Marcia Pfleger)






Palavra: falada, escrita...
(Marcia Pfleger)
Palavras escritas são como feitura do vidro: lentas, primeiro líquidas, quentes, depois solidificam. Enquanto líquidas podemos dobrá-las, cortá-las com a língua, moldá-las à guisa de Murano. Então, serão impressas em livro ou numa carta que alguém guardará, fechada, na gaveta. Talvez, virem obras de arte ou, em tuas mãos, dobras que ardem... porque há um veredicto. Palavras escritas são líquidas, ondulam nos lagos do pensamento, e você consegue rasgar o seu papel, porém jamais rasurar o seu sentido. Palavras faladas vêm rápidas demais, quebram como vidro, estilhaçam no chão, viram gemidos...






Sobre “Uma Oração”, de Jorge Luiz Borges
(Jorge Luiz Borges era argentino, aos 50 anos ficou cego e é considerado um dos maiores escritores da literatura mundial. Morreu em Genebra, aos 87 anos).
Reli, dia desses, um belíssimo texto de Borges – Uma Oração – e não posso deixar de me sentir tocada, especialmente com seu final: o desejo do autor de morrer completamente, morrer integralmente, junto com o corpo e à maneira deste.
Esse mesmo desejo, de total aniquilamento , também está no poema “O Suicida”, quando diz: “Morrerei e comigo irá a soma do intolerável universo”.
Não acredito que esse anseio expresse a vontade de um homem que cansou de viver ou que, em suas horas finais, desvalide as paixões que o moveram - seja por uma causa, seja por um livro, seja por uma mulher... A paixão é uma chama que se justifica e, pela sua própria natureza, uma forja da qual saímos transformados.
Essa aceitação de uma morte integral, mesmo ao completo aniquilamento, expressa em Borges, não me parece voltada à autodestruição ou à busca do esquecimento da própria miséria humana. Talvez, antes, seja o desapego absoluto, asceta, pelo qual o homem é finalmente redimido. A suprema humildade de entregar-se ao que tiver de ser, mesmo que signifique o defrontar-se com aquela escuridão que a cegueira de Borges não poderia jamais igualar...Mas cujo mistério seu coração prenunciava.
(Marcia Pfleger – abril/2013)